A sensibilidade da arte e o toque da terra: a artista, a pesquisadora, a poteira Celeida Tostes

A sensibilidade da arte e o toque da terra:  a artista, a pesquisadora, a poteira Celeida Tostes

Por Isabela Nascimento Frade

Enquanto outras áreas  de conhecimento visam conquistas objetivas, o campo artístico almeja diferentes tonalidades sensíveis ao chamar atenção para um momento único a ser despertado pelo(s) artista(s). Trata de atuar para a confluência de forças sensoriais a se tecer em uma oportunidade, curto espaço e tempo para a promoção de um extraordinário saborear o próprio existir. Por isso algumas pessoas se aferram à noção de que a arte não serve para nada; na verdade, ela serve para viver com as disposições afetivas ampliadas, gerando intensidade. A arte serve para melhor viver!

De um modo geral o capixaba gosta de arte, está disponível – o que já é o primeiro proveito dessa disposição para o contato – e são ricas as ofertas em um território pleno de diversidade cultural. Aqui precisamos esclarecer que falamos de arte de um modo geral e que, pelo nosso título, envolvemos artistas contemporâneos e poteiras em uma única redoma, a da cultura. Estamos todos juntos nessa seara, ainda que nem todos tenham lugar na primeira fila, a ambiência é compartilhada. Cabe dizer que nem sempre o primeiro lugar é o melhor pra assistir o show: no campo de fundo às vezes rola dança e brincadeiras mais interessantes longe do rígido protocolo do primeiro andar. Quiçá pudéssemos todos circular por todos os degraus, absorvendo tudo! E, aqui entre nós, capixabas de raiz ou recém chegada como eu, há essa possibilidade de entrecruzamento ricos, fecundando todo o húmus da cultura.

Vivemos recentemente um momento assim na Casa do Governador, esse lugar híbrido de parque, museu, praça, casa de shows, ponto de encontro. Um lugar especial  para a contemplação da paisagem, para o olhar ao longe, mas também para o mergulho óptico no contato íntimo com obras de arte que se acomodam nesse paisagismo ainda incerto. Seria interessante perguntar o que ainda está por vir, pois é uma  configuração mutante, sempre se adensando, pois segue criando novas nuances. Talvez nunca  esteja pronto e isso é por certo um valor, algo que nos abre para um futuro e nos deixa em aberto, na expectativa que, sem dúvida, é um sentimento, em si, emocionante.

Pois é nesse cenário que vivemos um momento dedicado ao barro orquestrado por Omar Salomão, curador e coordenador do parque, pessoa de sorriso largo e pensamento livre que descortinou esses diferentes aspectos da relação com a terra. Foram dois dias intensos que deixaram memórias intensas em quem viveu suas propostas: poesia, artesanato, arte contemporânea, história, música, arte-educação, arquitetura, tecnologia ancestral e moderna. Salomão cresceu tramas sutis entre suas vertentes, gerando um complexo tecido entre cada uma dessas expressões, valorizando pessoas e suas experiências, criando espaços de diálogo entre elas. Como parte desses encontros, trago a vocês a experiência de levar ao palco a obra da artista Celeida Tostes. Fazendo parte de uma mesa de debates, pude apresentar algo sobre essa personagem incrível da arte contemporânea brasileira.

Celeida Tostes (1929 – 1992) viveu  na capital do Rio de Janeiro mas com constantes períodos no interior do estado, onde criou afinidades com a forma de vida mais próxima à terra, dos elementos mais simples da vida camponesa. Ela recordava constantemente desse período, dos jogos infantis  que a teriam encantado com o barro. Deste fecundo lugar da infância, a artista soube acessar um rol de experiências vivas e encantadas. Uma delas, os amassadinhos, tornaram-se marca impressiva de cada pessoa em um punhado de argila, evocando o primeiro gesto humano, o da preensão. Do oco da mão recheada de barro, aparecia, com a pressão da mão fechada, o espaço interno da mão, marcado pela força e sensibilidade da argila.

Na imagem abaixo, há uma sequência de pequenos aglomerados de cerâmica, todos alinhados aqui nesse cenário da mostra na Galeria Superfície, em 2023. Celeida dizia que, dentre os milhares de amassadinhos, ela reuniu mão de crianças, de idosos, de artistas, políticos, presidiários, garis, estudantes e todos os que ela pode acessar com a solicitação desse jogo plástico de deixar sua “pêga”, o espaço manual pressionado sobre a massa. Em uma grande instalação com três painéis de 6 por 3 m, ela dispersou esses gestos primais em um ritmo regular com grande intensidade háptica. Esse foi seu último trabalho exposto em grande mostra, a Bienal de São Paulo, em 1991. Aqui temos um modelo menor, com uma centena destes gestos arcaicos mas mantendo a roda central, evocando a mó.

Como a artista frequentemente acessava as experiências antecedentes, revisitando obras de tempos em tempos, não podemos precisar com certeza quais seriam seus últimos trabalhos. Os trabalhos, tão fecundos, ocorriam em novas configurações a ampliar seu potencial semântico e simbólico. Os amassadinhos foram apresentados de diferentes modos.

Me lembro de ter visto um desses em exposição, há muitos anos quando, ainda viva, a artista inseriu inúmeros dentro de uma grande tina de barro cerca de 3 metros de diâmetro. Não me lembro exatamente quando, nem onde, mas a impressão da grande tina com as peças em profusão implicaram em relação de vida toda, sempre está nítida em mim a sensação vivida. O que apresentamos aqui é o mais recente, por ocasião da exposição Ventre da Terra na Galeria Superfície, em São Paulo. E, assim, tocamos na essência da arte, sempre cambiante, desafiando sentidos, como comentamos, mas permeando gestos aplicados aos espaços da cultura, marcando sensações intensas nos corpos e consciências dos espectadores, daqueles que esperam, da arte, também respostas ou mais impulso aos seus próprios enigmas do grande desafio do viver. Sem o público, disse antes, não há arte. E Celeida contava com o público em dimensão participativa, conquista da arte contemporânea desde as propostas de Helio Oiticica e Lygia Clark e Pape, da geração contígua à sua, que abriu as novas frentes de relação da arte para além do artista. Quando Celeida chega dos estudos no exterior, em plena ditadura, HO já estava em Nova York e Lygia Clark em Paris, ambos fugindo do extremo obscurantismo que vigorava nos anos de chumbo . Mas as comportas haviam sido abertas e esse rio hoje caudaloso da arte contemporânea participativa começava a minar, já se fazendo aluvião, metáfora mais correta para falar de Celeida.

Em outra obra icônica, essa feita no interior do Parque Lage, onde funciona ainda hoje a Escola de Artes Visuais, a EAV, uma grande batata foi “plantada” dentro de um enorme tanque com água, na piscina da antiga casa de Henrique Lage e Gabriella Bezansoni, cantora lírica. Naquela época, nos anos 90, a EAV fervia com os artistas e seus estudantes, uma escola inovadora e vibrante.

Celeida fazia parte dessa insurgente camada de consciência transformadora. Como diziam alguns alunos, era “selvagem”. Não estava acomodada no ambiente acadêmico das Belas Artes, ainda que tenha obtido seu grau de Livre Docente, alcançando prestígio acadêmico e atingido o topo da carreira docente. Era pesquisadora de mão cheia e investigava a presença da cerâmica em distintos ambientes culturais. Estudou a cerâmica awrá, a cerâmica guarani e múltiplas outras tradições, buscando entender suas tecnologias e suas significações culturais. Celeida estudara Belas Artes mas atuava no setor de Artes Industriais do Curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Fazia conexões com muitas outras áreas, como a arquitetura e a antropologia.

Mas voltemos à grande batata e a sua ocorrência específica: era um projeto que envolvia os alunos do Curso de Artes do Fogo, nome com que ela abrigava o trabalho com a cerâmica na EAV, e esse coletivo construiu a grande forma com armação de arame e envolveu-a com a massa feita de terra, argila e outros minerais e cimento, para mantê-la firme durante uma exposição que ela montara nos salões e no pátio do parque. Era um período em que a artista se dedicou a grandes formatos e a explorar misturas com a argila, superando a necessidade da queima e criando peças monumentais. A batata, mantida dentro desse espaço úmido, e tendo em seu interior muitas batatas naturais, após dias ali na piscina foi aberta a marretadas e dela extraíram-se muitas batatas brotando e sendo então distribuídas para que o público pudesse ter suas mudas e produzir batatas caseiras. Foi uma grande farra esse processo e o impacto das batatas saírem brotando foi intenso, segundo relatos de seus participantes. Essa imagem foi um dos poucos registros do processo e está no banco de dados do Itaú Cultural, instituição que organiza um arquivo sobre arte contemporânea brasileira em domínio público. Apesar dessa única fotografia, originária de uma matéria do antigo Jornal do Brasil, traduz a atmosfera de encantamento da obra, agora compartilhada com vocês. Volto a insistir: sem o público, o que pode a arte?

Aqui tocamos em uma experiência icônica da artista, a obra Passagem. Após construir uma urna de grandes dimensões, se deixa encerrar no interior desse grande útero de barro. É a obra mais conhecida de Celeida, revelando uma entrega absoluta para a terra, constituindo-se numa espécie de ritual de passagem, indicada no título. Após alguns minutos encerrada em seu interior, Celida rompe sua urna de argila, prostrando-se no solo. Segundo ela, renascida. A sequência do gesto artístico de encerrar-se na grande esfera foi de algum modo uma extensão de um de seus primeiros trabalhos na cerâmica e é apresentada em sequência. Nos exercícios do torno, quando as esferas ainda se rompiam e seus rasgos revelavam mistérios internos às formas. Casa de passarinho, útero, esferas fecundas.

Assim como a primeira com a obra que continha a grande roda, depois seguiu para a construção de muitas, compondo a série as Rodas. Se dão como alusivas aos grandes corpos esféricos das mós, estruturas de pedra dos moinhos arcaicos, evocações do neolítico. As rodas foram insistentemente produzidas e deixaram sua marca no cenário carioca e nacional. Além delas, os grandes Guardiões que se erguem como figuras arquetípicas de um passado comum clamam por um tempo de raízes longínquas. Podemos dizer que Celeida queria reunir a todos, no passado e no presente.

Para o seu tempo presente, realizava esses e outros imaginários das obras participativas e também envolvia-se em fluxos laborais. Exercendo o torno como grande oleira, em perícia dedicada e constante, criava potes e esferas às centenas. Segundo ela, é com a repetição que se domina a arte. Seus alunos relatam que também eram levados a produzir insistentemente pequenas esferas e ovos, até adquirirem mestria.

Era essa a sabedoria artesã que ocorria no acúmulo de gestos de trabalho, em seu corpo educado e harmonizado, nos gestos disciplinados da agência laboral. Essa imagem do pote de Celeida deixa ver que ela admirava a arte da olaria e desejava ser parte deste universo. Denota também que a artista rompia hierarquia entre arte e artesanato e seguia  atravessando suas fronteiras, misturando ideias e práticas de ambos os campos. Celeida, poteira de mão cheia!

Como já foi dito, a arte serve para o melhor viver. E a possibilidade de ter recursos, fazer peças úteis a serem comercializadas, nunca foi um problema para a artista. No Morro do Chapéu Mangueira, criou um Galpão das Artes que está vivo até hoje. Ali se fabrica de tudo: panelas de barro, bonecas de tecido e costura, bordado são os mais citados, mas o que se vive ali é o que se faz caminho para a subsistência e alegria. O galpão chegou a ter uma barraquinha na feira livre do bairro para atender à venda das peças, no sentido de incrementar as rendas familiares na comunidade. A continuidade por todos esses anos revela a paixão de todos ali pelo projeto.

Por último, um de seus trabalhos que mais gosto, o Guardião. Invocação ancestral dos grandes guerreiros, hoje consagrando seus espaços em vários parques do Rio e este, abaixo, segue altivo em Petrópolis, cidade da Serra Fluminense.

Celeida Tostes era vista muitas vezes com as mãos na terra, cavando o chão para usar o material. Incorporava o território, elaborava misturas entre muitos elementos para poder fazer uso dessa terra e criar a plasticidade e a aderência necessárias. Era mais que cerâmica, era a artista na alquímica expansão de sua linguagem.  Entre jogos e fainas, a lama se espraia. A poeira do passado vem vindo e chega até nós. Nem sempre vai à chama no forno e sai terracota. Celeida nos deixou um legado a nos nutrir a todos e hoje vemos seu nome retornar. O melhor deles é a liberdade de criar novos processos, o que nos leva cada dia mais a explorar, a pensar que fazer arte significa dialogar com o mundo e agenciar novos elementos, recriando em recursividade, sendo artífice deste mesmo mundo e por ele sendo moldado. Agora o mundo clama por ela.

Fazemos aqui a nossa homenagem aos 30 anos de sua morte, mas não de sua partida, pois está cada dia mais presente.

– Vamos Celeidar!