🌎 A Humanidade da Arte

🌎 A Humanidade da Arte

Por Isabela Nascimento Frade

A Bienal de São Paulo: de salão pálido a encontro vibrante

Uma das maiores reuniões de artistas contemporâneos se dá na Bienal de São Paulo. Está distante o quadro descrito por Aracy Amaral que, em 1981, comentava o clima entediante e a descrevia como um pálido salón internacional. Hoje é um grandioso encontro que cria inúmeras expectativas e é acompanhada não apenas durante a mostra, mas por todo o biênio, com seus textos, eventos paralelos e suas dispersões por outras regiões do país.

Opera como gavela, compondo um feixe fascinante de novas relações na arte que se produz a cada edição. Criada em 1951 pelo empresário magnata Ciccillo Matarazzo, era uma investida grandiosa na arte moderna e na nascente arte contemporânea que, desde então, impacta a arte mundial. Esse é o nosso tema de hoje, meu dia de estreia nesse e-jornal.

É sobre ela que falarei nesta minha coluna em estreia na seção arte & cultura. Mas primeiro, me apresento: sou Isabela Frade, artista, educadora e pesquisadora do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da UFES. Vindo do Rio de Janeiro, em processo de me aclimatar nas terras capixabas e busco me integrar em sua cena artística.

Sob esse aspecto, ressalto que é a apreensão da obra, a sua absorção pelo corpo social o que finalmente realiza a natureza de toda e qualquer obra de arte. Somos nós, enquanto seu público, que a manteremos viva.

Responsável pela cadeira Cerâmica/Escultura e lecionando no Programa de Pós Graduação em Arte, o PPGA/UFES, na linha Intermeios, tanto crio quanto ensino, tanto leio quanto visito, quanto escrevo e coleciono. Vivo intensamente todas as dimensões da arte me estabelecendo, como artista, em seu nicho contemporâneo.

Do ponto de vista da pesquisadora, venho observando o crescente interesse do público não-especializado sobre a arte contemporânea – tanto aqui como por todo o país e na cena internacional – para o bem e para o mal (rs, exagero!), este seguramente no pior sentido em descaracterizar a arte como simples mercadoria, coisa exótica ou fonte de usura e privilégios.

Tecendo reflexões sobre  sua história passada e recente, seus traços estético-políticos e seus principais agentes: artistas, curadores, críticos podemos nos aproximar melhor sobre seus próprios desígnios e, o mais importante, de seu destino final que é, sem dúvida, nos humanizar. Sem retirar a arte de seu contexto nem isolá-la de outros espectros da cultura, essa coluna se propõe a atualizar o leitor e leitora sobre as dinâmicas emergentes da arte e de suas disposições culturais mais significativas, com ênfase nas condições  presentes.

Vitória possui um núcleo forte de pesquisa em arte e um mercado promissor. Tem na universidade seu principal meio na formação de seus agentes culturais e artistas, o que implica em uma campo altamente intelectualizado.

Fazer parte desse processo é nosso objetivo e estaremos juntos criando consciência reflexiva sobre o tema e estabelecendo perspectivas agudas em teor crítico. A arte, sem crítica, não exulta; ela por si exige um pensamento forte que a acompanha e vibra em ressonância. E esse será o nosso papel, meu e de leitores, que tomaremos como objeto de apreciação.

Sobre o debut incide o grande campo de influência que é a Bienal de São Paulo, uma referência nacional imprescindível e com grandes repercussões também no circuito internacional. Pujante, o evento desde sua inauguração coloca a nossa  arte brasileira para circular pelo mundo mas também traz, no sentido inverso,  a produção internacional mais relevante.

É um fenômeno que vigora no mundo globalizado, sendo um canal importante de sua expressão. De certo modo, podemos dizer que é o que se tem de melhor dessa faixa cultural. Sempre se atualizando, trazendo o que aflora nos fluxos entre cidades, países, promovendo diálogos entre universos culturais.

Este ano a Bienal emociona. Seu curador, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, nascido em Camarões, vive em Berlin. Traduzindo o melhor do mundo globalizado,  escolheu tocar na questão central da atualidade, o sentido de humanidade mesma, respondendo ao clima geral da crise bélica, ao choque de mundos postos em risco na economia imperialista, o retorno ao autoritarismo em suas formas radicais.

São palavras suas a advertir o visitante: “Esta Bienal não é sobre identidades e suas políticas; não é sobre diversidade nem inclusão; não é sobre migração nem democracia suas falhas.. (…) É sobre a humanidade como verbo e como prática, sobre o(s) embates(s) e as negociações quando do encontro de mundos distintos, sobre desmantelar assimetrias como um pré-requisito para o exercício da humanidade como prática, sobre a alegria e a beleza e suas poeticalidades enquanto forças gravitacionais que mantém nossos mundos no eixo… pois a alegria e a beleza são políticas. É sobre imaginar um mundo onde enfatizamos nossa humanidade.”

Ndikung decide por montar sua equipe de curadores assistentes compondo olhares jovens mas nem por isso inexperientes, capazes de traçar rumos anticoloniais que abarcam dominados e dominadores, com suas misturas por diferentes gradações sendo o campo de  investigação por excelência da mostra. Falaremos sobre essa equipe em nosso próximo texto, aguarde! Com aguda sensibilidade, escolhe atuar de forma serena, como diz o verso no poema  “Da calma e do silêncio” da escritora e linguista mineira Conceição Evaristo que escolheu como referência:

 Nem todo viandante anda estradas,

há mundos submersos,

que só o silêncio da poesia penetra.

 Devemos seguir devagar nesse passo da percepção plena, espaçada por cada estação: Denominadas por três Fragmentos I. Da calma e do silêncio, II. Uma consciência em flor para os outros e III. A intratável beleza do mundo; caminhando pela exposição com inúmeros lugares para acolhimento, pois ela é grandiosa: são 125 entre artistas  e coletivos que trazem sua produção e, assim,  abre intensos canais de diálogo com o público e também entre os artistas, que podem se conhecer e, aproximando-se, em agenciamento, a revelar novas potências para o mundo. A Bienal SP tem se tornado um lugar de encontros.

De certo modo, ou melhor, de todos os modos, a mostra vem se constituindo em uma experiência nutrida e sedimentada por todos os biênios. A cada edição uma nova configuração acontece e o extrato dessas experiências se adensa, constituindo material fértil para o seu próprio futuro. Assim, essa atual edição, contemplando 36 modos em estratégias curatoriais por constelações mais e mais complexas, se atualiza em vibrações excepcionais, altamente depuradas. No entanto, essa edição, em decisão de apostar em olhares mais abrangentes, reúne centro e periferia em dimensões plásticas mais afeitas, afetações corpóreas em escalas nossas, humanamente realizadas.

É como se as obras e todo o ambiente organizado pela curadoria estivesse abraçando o público. Por isso me senti emocionada durante quase todo o percurso, a cada instante se formava uma paragem,  uma zona de atenção desenvolvida em envolvimento intenso e cuidadoso. As próprias obras denotam essa estratégia de engolfamento sutil e delicado, quase todas elas um convite ao espectador a se abandonar em êxtase.

Por isso, durante as 7 horas permitidas em que ali estive foram de enlevamento. Claro, não pude ver todo o conjunto assim, mas me permiti ser seduzida e mergulhar sensorialmente em contemplação dedicada, buscar nos áudios a cronologia da obra e conhecer a história dos artistas. Mas é marcante que esta bienal nos pede a invasão das superfícies associada com olhares longos, mas de também nos afastarmos, de contemplar longamente de perto e de longe.

Uma festa para os olhos mas também à pele e aos ouvidos, pois havia também forte presença da arte sonora; muitas obras se apresentam como multisensoriais. Mas não nos enganemos: longe de ser apenas um envolvimento superficial, a curadoria constitui um aporte conceitual denso. Há, inclusive, muitas obras com a presença de livros em literatura científica compondo cenários reflexivos que remontam tanto a publicações anteriores, quanto de obras recentes.

Para uma pessoa de trato acadêmico como eu, é simplesmente deliciosa essa associação entre material reflexivo e pura matéria artística compondo agrupamentos, constelando ideias e sensações. A percepção,  perpassada por essa dupla entrada,  pede também demora, seu tempo de ruminação. A curadoria deixa claro que estamos em outro lugar, bem distante dos apressados cliques e likes. O campo da arte pede passagem transformadora, ritualizada, espessa.

Ao evitar me alongar demasiadamente hoje e esperando que, a pedidos seus, possamos falar mais sobre essa mostra impactante, que atrai multidões aos seus salões e surpreende como espaço de formação de público, assuntos que posso esmiuçar melhor na próxima coluna, escolho apresentar a vocês uma obra que catalisa os passantes, tornando-se um lugar de fruição excepcionalmente forte. Atentem: no centro de uma arena, se instala uma árvore de  galhos amplos e abertos nos quais estão pendidas  miríades de fios, todos feitos de miçanga de vidro de um amarelo claro e vivo; Assim como seu tronco e raízes, a árvore é envolvida por essa diminutas células de vidro que cintilam uma beleza com função milagrosa.

A suntuosa árvore demarca o centro de uma cena onde seres alados, mulheres-pássaros, se dispõem ao seu redor, criando um espaço imantado, para o qual somos atraídos, engolfados pelo que se assemelha a uma cena mítica. Estamos sendo remetidos à antiguidade africana e postos diante das Ìyámis, entidades femininas ancestrais, de Nádia Taquary, artista baiana. E aí nos damos conta: a obra é plena evocação! A árvore é a divindade Irokó.

Estamos no tempo mítico da criação da Terra, nosso planeta. Criada para a própria Bienal SP, Irokó: A árvore cósmica evoca a divindade do Tempo, divindade presente em inúmeros terreiros de candomblé que floresceram no Brasil através da árvore gameleira. Segundo a tradição, foi por ela que os orixás desceram à Terra. As Ìyámis, feiticeiras, a circundam em cenas de introspecção e mistério.

Tudo é sagrado. Nessa raiz da própria arte, de magia e do encantamento, a artista cria um ciclo de atração vigorosa. Será impossível deixar de senti-la, mesmo à distância. Nádia consegue capturar-nos com uma técnica precisa em suas esculturas de bronze e suas tramas de contas. Estando logo em uma das primeiras cenas da mostra, seguimos dali já impactados por seu deslumbramento e, ainda que as outras obras também operem suas potências sobre nós, é a ela que retornamos, quando voltamos para a saída, em segundo impacto se, como vivenciei, estiver brilhando na  noite.

Além de Irokó, operando como um portal mágico, todo o pavilhão térreo é pleno de feiticeiros artistas. Esse era o plano inicial para outros sutis desenvolvimentos nos demais andares, por muitas e muitas estações vívidas altamente contagiantes. Por mais que eu deseje passar-lhes essa força vívida, será apenas com muitos argumentos uma pequena faísca do que será experienciado quando puderem visitá-la.

Para conhecer a Bienal de São Paulo, reservem pelo menos um final de semana e a dica é ficar por perto, em Moema. Outra boa surpresa é o café da Bienal SP que serve pratos e lanches deliciosos, com sabores africanizados e indianos tanto dentro quanto fora do pavilhão por preços razoáveis.

Também vocês descobrirão, no andar térreo, a  livraria Travessa que, assim como nos anos anteriores, atende aos exemplares do catálogo de obras e de textos curatoriais e outros livros raros de arte. Já vão guardando dindin, vale super à pena. Os áudios de apoio são excelentes, e todo esse aparato é um dispositivo de leitura avançada que instiga a fruição das obras.

Portanto, não esqueçam: celular carregado e fones para permanecer ligado nessas andanças.  E ah! Muito bom é ter um copinho de água desses de carregar no cinto, pois não são permitidas as garrafinhas; há sempre por perto bebedouros com água fresca.

Ao chegar, antes de tudo, reparem no prédio em si e vejam que está todo envolvido por tramas de palha tingida na obra da ganesa Teresah Ankomah que, em um gesto monumental, abriga o lugar, contendo assim, dentro de si, todo o grande conjunto das obras.

É isso, termino concluindo que estaremos todos, ao adentrarmos no pavilhão Ciccillo Matarazzo, abrigados por esse imenso cesto que é What Do You See (2025). É a realização mais direta da arte como armadilha, como diria Alfred Gell. Captura para a vida, não para a morte, para gestos intensos de transubstanciação, de humanização. Já ali começa o encantamento.