Cultura em Movimento – Caminhos para a arte contemporânea

Cultura em Movimento – Caminhos para a arte contemporânea

Na coluna de hoje pensamos o medo. Mas não o medo da guerra ou da catástrofe climática. Essas estão nos consumindo o ardor pela vida, não nos deixam descansar!

Atualmente são 54 guerras no mundo, a poluição que não cessa, a vigilância e controle total. E todos os desafios que surgem com essas dinâmicas disruptivas. Mas dentro do caos existe a criação e a arte vem nos sugerir novas possibilidades de sentir e de existir. Da sua estranheza é o medo que abordamos.

Muitas pessoas se afastam dos museus e criam defesas na apreciação da arte. O objeto, cena ou ato – a obra – é algo hermético para quem não está iniciado nos seus ritos.

O museu é suntuoso, refinado, os poderes todos revestidos com suas insígnias de luxo: o grande portão de entrada, o tapete vermelho, o ar gelado no máximo, os guardas uniformizados na porta e tantos detalhes que poderíamos elencar sobre a distância entre o ambiente e os populares, um desenho arquitetônico que, comumente, advém do poder autocrático – palácio imperial, casa de uma família tradicional, prédio institucional nacional, elemento-chave para demarcar a dimensão hierárquica entre o que se expõe e quem o vê.

A ambiência dos espaços expositivos sempre tão marcadamente limpo e elegante. Há um silencio que se impõe no ambiente onde a obra se instala como presença. Há que chegar até ela, mas nem sempre essa abordagem é fácil. É esse um dos caminhos sobre os quais eu venho hoje pensar.

O objeto de arte (englobando as categorias citadas acima e outras – cena, ato, coisa) se instaura como enigma. É preciso decifrá-lo. Pode ser pelo olhar todos os seus mínimos detalhes ou, ao contrário, olhá-lo desde longe, absorvendo sua totalidade.

Quando um artista cria uma obra, todo o seu arsenal de saberes é posto em prática; a construção de um trabalho, mesmo que seja feita por um instrumento de auxílio, como um computador, requer sua atenção plena, pois ele deseja instaurar algo novo no mundo. Há esse desafio inicial pela originalidade que requer um esforço descomunal, ainda que possa parecer fácil se estivermos presos à ideia de genialidade e achando que a obra é uma ideia que “poca” na cabeça de seres muito especiais. Há um deciframento, e estamos desafiados a essa tarefa. Esse é nosso segundo caminho.

A noção do gênio surgiu no Renascimento que, inspirado nas perícias gregas, criou a narrativa dos talentos e dons. A Grécia Antiga no entanto, pelo que  conhecemos de seus documentos, era devotada ao labor incansável, à observação detalhada e à formação com os mestres, alguém que já havia cultuado seu aprendizado com outro mestre e assim por diante. Havia uma linhagem de aprendizes e mestres que criou outro caminho de acesso à arte, e podemos também seguir por essa trilha para compreendê-la, entendendo suas próprias motivações e pertinências.

Não é nosso objetivo aqui falar da Grécia, mas estamos no mundo contemporâneo que resgata e ecoa o que ocorreu lá. Aliás, há rumores de que os gregos seriam insuperáveis. À eles está depositada a ideia de origem da arte. Como se fossem uma civilização especialmente dotada.

É que o Renascimento propagou intensamente seus feitos, recuperando certos poderes esquecidos nos períodos medievais, tempos que haviam sido suplantados pelas constantes guerras na derrocada romana. E, vejam, criam a narrativa de uma linha direta, como se fosse herdeiros daquela civilização.

É uma dose exagerada de auto importância, como se hoje fôssemos a evolução. Um germe inoculado na cultura europeia, como assim percebo. E bem arriscada essa concepção se levarmos em consideração os riscos de supremacia.  Vejamos Gaza, que está sitiada, sofrendo um massacre, e o que residualmente ocupa o discurso sobre o genocídio.

Se olharmos com cuidado o cenário atual, veremos algo semelhante como se sugere acima, discursos suprematistas e elaboração de narrativas quando se pensa até mesmo em eliminar coletividades e grupos por desejo de superioridade. É triste ver que discursos falsos que se mesclam; o que sabemos pela observação de vários percursos de artistas.

E, quase sempre, há luta e confronto, tudo isso para os aristas não deixarem de ter agência e opinião. A arte, assim, renasce pela ideia brotada dessas sementes renascentistas com o primeiro historiador Vasari, que narra o mito de Da Vinci e outras personalidades marcantes, fundando a ideia de gênio. Seus ecos chegam até aos nossos salões e instigam as nossas expectativas.

Não imaginamos que a arte exige que também façamos a nossa parte. E é essa a proposta dos modernos e contemporâneos, um espectador ativo, um intérprete e um agente que possa deixar a obra encarnar em si. Um espectador emancipado, como sugere Ranciére. E esse é o quarto caminho ou movimento, o que devemos fazer em direção à ela.

O artista se forma em uma escola – que pode ser uma oficina ou uma universidade. Não há artista solitário, sem noção do seu ofício e de seu público. Há os que acolhem ou os que seduzem, seguem suavemente nos atraindo para si, mas há os que perturbam, querem “causar”.

Provocar espanto é algo tremendo, exige grande perícia influir na percepção de outrem e trazê-lo a uma suspensão de sentidos. Há os que convocam à participação, outros a uma reflexão sintonizada com uma abstração complexa. E, ainda assim, se renovando e aprendendo a cada dia. Para nós, a arte é pesquisa, seguimos buscando fazer renascer a cada dia esse sol. Outrossim, percebam, a luz da obra pede presença viva, um espectador aberto, disponível, pois muito do que faz a arte é produto da relação direta com seu púbico.

Para nos ajudar a pensar sobre as vias de acesso que consideramos aqui: a história e a formação de agentes sociais (artistas, curadores, técnicos,  e muitos entre todos os apoiadores, colecionistas, museólogos, educadores), o campo social e sua cultura e, por terceiro, o desenvolvimento de repertório em linguagem pelo artista, chegamos um exemplo sobre um processo que à primeira mirada poderia parecer sem sentido mas que, ao elaborar uma perspectiva de alteridade criativa, podemos apreciar. Falo do artista brasileiro Antonio Társis. Sobre sua pesquisa envolve matéria de descarte e conceitos sobre humanidade que viemos pensando juntos desde a primeira coluna. Para Társis, a cada item descartado são revelados os vestígios da ganância humana e da corrupção social.

A sua obra catástrofe orquestra #1 (Ato I) é a que podemos ver em todos os quadros neste texto. São facetas de sua instalação, modalidade de criação própria à arte contemporânea que está aberta ao púbico em São Paulo, integrando o conjunto expositivo da Bienal SP. Todas as telas expostas envolvendo o espaço são produzidas

com caixinhas de fósforo que, na leveza das pranchas de madeira de balsa, se erguem como tapumes e tramam um colorido desbotado, suave entre tons e subtons de azul e vermelho. Em algumas faces, cada caixinha contem pedacinhos de carvão, uma materialidade central na sua obra.

Segundo o artista,  sua pesquisa material ressignifica a combustão pela alusão ao fósforo  e o carvão,  implicando relações das práticas de trabalho m dimensões internacionais – traçando conexões entre comunidades do Sul e do Norte globais – e sobretudo o legado da mineração.

Nós, aqui no ES, entendemos bem sobre esse legado trágico a que estamos submetidos. Poderíamos pensar que o carvão é a nossa morte lenta, por toda a poeira atmosférica que nos assola dia a dia, como uma praga contínua, mas suave.

Para Társis,  é uma matéria que se relaciona com as plantas, pois o seu carvão é o vegetal e que, entre sua vida desde semente e sua queima, pulsa entre vida e  morte. Mas Társis vai mais além, pois ele busca sonoridades. Há um tambor que, de acordo com um dispositivo eletrônico, de tempos em tempos faz com que o bloco de carvão com pedaços amarrados e suspensos por um fio, caia a bata repentinamente no tambor. Um baticum intempestivo, surpreendendo os espectadores que passeiam por seus nichos de papel e madeira da balsa, as já anunciadas caixinhas de fósforo; evocação da catástrofe de um mundo de excessos e dispêndio que produz o fim dos tempos em aceleração.

Caixinhas de papel, cordas, carvão, elementos de uma cena corriqueira para quem viveu em uma favela e vivia muito solto, brincando na rua. Ele não conheceu seu pai, foi criado por uma mãe empregada doméstica e seus jogos e brinquedos, provavelmente, eram de pesquisar o que poderia obter em liberdade, no lixo .

O artista nos trouxe esse sentido pleno de texturas, sonoridades e cores que estavam nos descartes e que agora servem com dignidade como seus materiais de criação em construções delicadas mas grandiosas. Seus painéis criam uma arquitetura de superação, em potente ética vital e seguem para o mundo.

O artista mora em Londres. É uma força jovem que abre novas frentes para o sentido da arte. Ainda estamos descortinando seus apelos, o que podem abarcar sobre suas configurações como construção de sensação de sentido. Há que chegar lá e conferir seus efluxos.

É sobre esse aventurar-se em abertura para o outro, para o novo e diferente o que trata a arte contemporânea. Talvez por isso incomode ou perturbe. Mas isso não é um problema, ou é?